segunda-feira, 31 de maio de 2010

Função social do advogado na sociedade Pós - Moderna - Entrevista com Eduardo Bittar


Por Fábio Brandt



Advogados lidam, inevitavelmente, com comportamentos imorais, ilegais e até bárbaros. Por isso, escrúpulos morais não podem impedir o profissional de defender alguém que infringiu a lei. Essas conclusões são de Eduardo Bittar, integrante do Instituto de Estudos Avançados e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Professor do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, também na USP, Bittar respondeu, por e-mail, a algumas de nossas perguntas sobre contradições do mundo da advocacia. Confira a entrevista:


Babel: O que um advogado deve levar em consideração para aceitar ou recusar a defensa de quem se declarada culpado? A gravidade do crime cometido importa para a tomada dessa decisão?


Eduardo Bittar: Não se pode exigir que escrúpulos morais medianos impeçam a atividade judicial de representar alguém que comete um ato ilegal. Isso inviabilizaria a própria profissão. Seria o mesmo que imaginar psicanalistas policiando o comportamento de seus pacientes e desvelando segredos intimistas revelados sob proteção da ética psicanalista para a avaliação da sociedade e da polícia. Numa sociedade policialesca, procura-se converter advogados e psicanalistas em auditores das contas mal-esclarecidas, do definhamento do projeto moral do iluminismo. Isso tem criado exacerbada perda de liberdade individual e crescente exigência de atropelo dos limites entre ética profissional e garantia social. Recentes arrombamentos de escritórios de advocacia são sintonia disso: de uma sociedade que se ressente da incapacidade de prevenir e punir e que faz desabar a garantia do sigilo profissional. Cada profissional tem livre convicção sobre os clientes que pretende defender, dentro dos limites da lei. Isso é de fundamental importância para que, quando se lida com conflitos sociais, garantam-se condições para o tratamento equânime. Ora, qual a tarefa de quem opera com o direito senão a de operar com conflitos sociais? E os conflitos sociais envolvem condutas que tocam comportamentos imorais, ilegais e, às vezes, bárbaros. O profissional do direito deve colaborar para solucionar, democraticamente e dentro dos termos da lei, os caminhos de realização da justiça.


Babel: Muitos criticam o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos por defender pessoas perseguidas pela Polícia Federal que ele mesmo tornou mais intransigente. Há prejuízo para a sociedade quando profissionais de altíssima qualificação mudam de lado?


Eduardo Bittar: Muitas vezes, pessoas públicas exercem seus papéis em outros contextos sociais. Não me parece exigível que a pessoa pública se restrinja, por exemplo, à atividade política. Deixado o cargo que se exerceu com seriedade e competência, a tarefa de quem exerce advocacia é responder por seus atos em conformidade com a ética da profissão. Cobrar “coerência” entre pessoa pública e pessoa privada, por vezes, é exigir algo que está além da capacidade de cada indivíduo oferecer, inclusive do ponto de vista moral. A lógica do devassamento da vida do ex-homem-público é a mesma dos paparazzi no caso da Princesa Diana. A equação era simples: por ser pessoa pública, tem-se o direito de, literalmente, persegui-la, em sua vida pessoal. O resultado é bem conhecido de todos, com o desfecho lamentável e pranteado mundo afora. Esse cuidado é necessário quando se trata de compreender a dinâmica particular de cada papel social: do homem público, no momento em que é homem público, e de profissional da advocacia, enquanto exercente da profissão de advogado.


Babel: O que são os princípios de presunção da inocência e de ampla defesa?


Eduardo Bittar: Os princípios da presunção de inocência e da ampla defesa decorrem da necessidade de proteger a dignidade da pessoa humana. Este é o fundamento ético de uma comunidade social, política e juridicamente organizada e a base de todo o direito constitucional. No Brasil, ambos os princípios são abrigados no artigo quinto da Constituição de 1988. Violar a Constituição, agredindo estes princípios, é inviabilizar o pacto de vida comum estabelecido por um documento jurídico de ampla significação. Mais que isto: permitir a soberanização do corpo do réu é abrir campo para a arbitrariedade, fato consumado, normalmente, em regimes autoritários – para os quais as práticas persecutórias limitadas e a autonomia do indivíduo não possuem qualquer sentido.
Do ponto de vista histórico, as primeiras escolas que testemunham a necessidade de abrandamento e limitação da pena são as Escolas Humanistas, eco direto do iluminismo. À era da concentração do poder, dos séculos 17 e 18, segue-se a era dos direitos. Nela, a desconcentração do poder se torna um tema de fundamental importância para o pensamento liberal. Suas conquistas são expressadas pelos direitos humanos das revoluções liberais do século 18, são consagradas em declarações, como a de 1789, e ganham campo dentro de documentos jurídicos constitucionais. Iniciado o período do constitucionalismo liberal, o direito é o novo elemento que compõe a forma com que o controle do poder encontrará seus limites.
Limitar o poder persecutório do Estado é garantir e reafirmar as conquistas dos direitos humanos. Desde o século 18, elas significam avanços sociais, políticos, éticos e jurídicos na definição e delimitação do próprio Estado de Direito.


Babel: Casos como o do médico Roger Abdelmassih, acusado de estuprar mais de 50 pacientes enquanto sedadas, representam a violação desses direitos? Algumas revistas e jornais o apresentaram como culpado, baseando-se apenas nos depoimentos de acusação.


Eduardo Bittar: Na sociedade do espetáculo, na leitura de Guy Debord, a imprensa exerce o poder decorrente da indústria da informação e se subroga a quaisquer outros poderes. Ou seja: o poder circulante na era da informação ainda está por ser disciplinado. Ele escorre com ampla liquidez na formação da opinião pública, na inconscientização do subliminar, na inculcação do indesejado, na irracionalização da autonomia intelectual. Ele decreta condições de livre domínio e pode se sobrepor a outras formas de poder e de normatização da vida social. Isso ocorre em tempos de transição social, chamado por muitos intelectuais de “condição pós-moderna”.
Como ensina Maria Rita Kehl, toda forma de atuação ilimitada da imprensa permite a arbitrariedade. Um caso recente, o da Escola de Base, ilustra que o papel do juiz se torna diminuto diante do poder de julgamento da mídia. A tarefa da comunicação social é de muita responsabilidade humana, política e social. A cautela deve regular sua força. O uso da força desmedida para exercer o direito de informar tem como efeito colateral a infração do direito à honra, à vida privada e outros.
A sociedade contemporânea espetaculariza porque goza na vontade de submeter o outro. Estremecer, atrair, horrorizar, causar, abalar, demolir, chocar são táticas verbais presentes no processo comunicativo midiático, de onde se extrai o poder de arruinar, nulificar direitos, arrasar existências.
O direito deve zelar para que o processo de inculpação se dê num procedimento legitimamente constituído e deve cuidar para que o próprio procedimento respeite os direitos fundamentais do investigado. Isso é algo exigível em todo procedimento persecutório dentro de um Estado Democrático de Direito.


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